A ALTERAÇÃO INDIRETA DA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA ACESSÓRIA DO ITCMD E A AUTONOMIA DOS ENTES FEDERADOS
Uma análise da alteração promovida pela Lei 14.010/2020
12 Nov 2020
12 Nov 2020
O Direito Tributário, embora se trate de disciplina inserida no ramo do Direito Público, não está imune aos reflexos das normas que regulamentam as disciplinas de Direito Privado, afinal, conforme prenuncia o artigo 109 do próprio Código Tributário Nacional – CTN:
“Art. 109. Os princípios gerais de direito privado utilizam-se para pesquisa da definição, do conteúdo e do alcance de seus institutos, conceitos e formas, mas não para definição dos respectivos efeitos tributários.”
Ao tratar da mesma temática o avizinhado artigo 110 complementa a exegese espiral que há entre os distintos ramos do direito dispondo que:
Art. 110. A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.
Essa conjugação denota que tais ingerências, mutatis mutandis, são recebidas pelo Direito Tributário tal qual são no Direito Privado. Outrossim, em Interpretação e Aplicação da Lei Tributária (2010), SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO aduz que essa reciprocidade tem o escopo de “[...] preservar a rigidez do sistema de repartição das competências tributárias entre os entes políticos da Federação, segregando a partir de conceitos de Direito Privado já sedimentados as fontes de receita tributária dos mesmos”.
O Imposto sobre a Transmissão Causa Mortis e Doação – ITCMD, de competência dos Estados e do Distrito Federal (art. 155, I, § 1º da CRFB), e que possui finalidade eminentemente arrecadatória, não faz exceção às regras insculpidas nos retrotranscritos artigos do CTN, na medida em que a definição do seu fato gerador e da respectiva competência, por exemplo, advêm justamente dos conceitos e procedimentos dados pelos competentes códigos de direito privado.
Nessa toada, há de se reconhecer que haverá uma alteração tributária indireta sempre que a modificação do conceito dado pelo direito privado atingir qualquer definição, conteúdo e alcance dos institutos relacionados à norma tributária.
Não obstante, de antemão cumpre minutar que, de acordo com o magistério dos professores HUGO DE BRITO MACHADO SEGUNDO e RAQUEL CAVALCANTI RAMOS MACHADO (ibidem), o spiritum normativo em comento não dá azo para fazer crer que por uma lei tributária fazer remissão ao dispositivo de determinada lei civil que suas alterações passarão automaticamente a produzir os respectivos efeitos. Há um caso concreto que ilustra muito bem essa ressalva da doutrina especializada, curiosamente, também em relação ao ITCMD – embora não relacionada ao Direito Privado. Nesse episódio ocorreu de diversos Estados-membros terem editado leis para instituírem a cobrança do ITCMD e ao mesmo tempo determinado que a alíquota do respectivo imposto seria sempre “a máxima estabelecida pelo Senado Federal”. Com isso os entes pretendiam um reajuste automático; independente de nova lei. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal, acertadamente, rechaçou tal pretensão, não declarando a inconstitucionalidade da norma, mas consignando a sua validade com a adoção da alíquota-teto da Resolução do Senado à época em que a norma do respectivo Estado-membro tenha entrado em vigor, sem admitir, assim, uma modalidade de polivalência superveniente da norma, sob pena dessa estratégia legislativa vir a ofender o princípio da legalidade e o da anterioridade tributária (RE 218.182/PE).
Esse último evento narrado diferencia-se da recém aprovada Lei 14.010/2020, que institui o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado – REJET – mais especificamente do seu artigo 16, o qual estabelece que o prazo do art. 611 do Código de Processo Civil para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 terá o seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020. Vejamos:
Art. 16. O prazo do art. 611 do Código de Processo Civil para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020.
A diferença é que, apesar das normas tributárias dos entes federados também fazerem remissão a outro dispositivo legal, in casu, ao prazo previsto no art. 611 do Código Civil, a natureza normativa em liça não ofende ao princípio da legalidade, tampouco ao princípio da anterioridade. Afinal, repise-se que o entendimento do STF não foi no sentido de sedimentar a impossibilidade da interpretação da norma pelo método sistemático do ordenamento jurídico, mas, sim, de manter a incolumidade de determinados princípios do Direito Tributário.
É dizer, a referida norma promoveu uma mudança provisória apenas sobre o prazo estipulado pelo artigo 611 do Código de Processo Civil – CPC, cuja redação original prevê que “O processo de inventário e de partilha deve ser instaurado dentro de 2 (dois) meses, a contar da abertura da sucessão, ultimando-se nos 12 (doze) meses subsequentes, podendo o juiz prorrogar esses prazos, de ofício ou a requerimento de parte.
Na prática isso significa que, nos casos em que a sucessão tenha sido aberta a partir do dia 1º de fevereiro de 2020, o prazo de dois meses para instaurar o processo de inventário e de partilha será contado a partir do dia 30 de outubro de 2020.
Malgrado o caráter provisório do artigo 16 da Lei 14.010/2020, tal modificação repercute em relação às obrigações tributárias acessórias, mais especificamente no que tange ao prazo para a incidência da multa na hipótese de o inventário não ser instaurado no prazo previsto pelo artigo 611 do CPC, porquanto, embora os entes competentes possuam autonomia para instituir a multa quando do retardamento do início ou da ultimação do inventário (Súmula 542 do STF), agora, eventual penalidade deverá respeitar a prorrogação do prazo conferido pela citada norma provisória.
Assim, por ter a aludida norma retroagido os seus efeitos para todos os eventos ocorridos a partir do dia 1º de fevereiro de 2020, nasce para o contribuinte a possibilidade de extinguir a cobrança da multa ou mesmo pleitear a restituição dos valores eventualmente pagos. E isso não se dá em função de os artigos 109 e 110 do CTN apenas versarem sobre a interpretação da lei tributária, mas, sim, por aquele regulamentar a relação existente entre o Direito Tributário e os institutos do Direito Privado; e por este veicular regras sobre os limites da competência tributária.
Com efeito, está evidente que a alteração provisória da legislação de Direito Privado em comento importa em diminuição das receitas dos Estados-membros, ainda que de modo oblíquo, o que poderia configurar uma ameaça à autonomia desses entes, verbi gratia, considerando a vedação expressa de a União instituir isenções de tributos de competência dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 151, III da CRFB).
Entretanto, apesar de estar patente a possibilidade (na práxis) que a União tem de exercer uma ingerência tributária e financeira indireta sobre os demais entes federados modificando normas de Direito Privado (art. 22, inciso I da CRFB), por não se tratar de uma modificação que interfira na competência tributária dos entes, cujos institutos, inclusive, devem ser pesquisados, em primeiro lugar, na regra de incidência trazida pela própria Constituição Federal (art. 110 do CTN); em função de o Direito Tributário assumir uma natureza do que já se chamou de direito de “superposição”, é dizer, por tomar como fato jurídico o que já se constituiu como tal na esfera do Direito Privado (art. 109); e, enfim, por se tratar de uma legítima alteração no ramo do Direto Privado, devidamente motivada (art. 2º da Lei 9.784/1999), notadamente, pelo princípio da predominância do interesse nacional, considerando o atual cenário de crise sanitária provocada pela pandemia da COVID-19, com vistas a homenagear a dignidade da pessoa humana, a razoabilidade e a proporcionalidade dos procedimentos, forçoso inferir que o art. 16 da Lei 14.010/2020 – REJET, não representa nenhuma ofensa ao pacto federativo e que possui substrato legal e constitucional para implicar em alteração de obrigação acessória relativamente ao ITCMD.
Celso Matheus Pires Assunção | Advogado | Especialista em Direito Tributário.